terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A URDA DA CRÔNICA

Raul Longo
Não sei como nem por quais caminhos, um dia me invade a caixa de correio um subject interessante: Crônica da Urda!
Aquilo me intrigou, o que seria URDA? A sigla de algum novo grupo revolucionário das selvas latino-americanas? Uma nova seita muçulmana? Imaginei até a possibilidade de uma União de Reestruturação e Desenvolvimento da África.
Lembrava-me de uma fina banda Finlandesa: URGA ou algo assim que não conseguirei localizar agora entre a CDeteca. Algum neo-barbarismo escandinavo a romper as fronteiras internéticas, impondo-se à ordem aparente da civilização informatizada?
Quase inteiros, me vieram uns versos de antigo poema do Vinícius de Moraes. Nada a ver! Aquele era dos Cavaleiros Urias, e já não lembro se dos Montes Urais ou os uriates da itálica Úria. Desisti das cogitações e fui lendo a tal crônica. Não vou lembrar agora o tema, mas me encantou o jeito de contar, contando-se.
Depois daquela, as Crônicas da Urda foram chegando regularmente e, ao longo do tempo, fui descobrindo que havia ali uma urdidura maior, correspondendo-se a todas minhas desconfianças: Urda é do México, de Cuba, da Nicarágua, Venezuela, Colômbia e Bolívia. É da Argentina e do Uruguai. Mas também é da Palestina, do Irã, do Iraque. E, sem dúvida, é das savanas africanas.
E o mais interessante foi que nas Crônicas da Urda descobri uma mulher de todos os lugares e das mais diversas formas. Meio que mito metamórfico.
Numa crônica é uma mulher de faca nos dentes e botes certeiros pela língua ferina, arrostando poderes em frases duras de quem desafia sem se assustar com o tamanho dos covardes. O que, agora que sei do seu viver, é o que me assusta, pois embora se deduza que ninguém seria idiota de se expor ao risco de arriscar algo contra alguém tão querida e conhecida por tanta gente e por todo o mundo, há sempre de se prevenir com aqueles tantos que, além de covardes, são burros.
Mas a Urda nunca será de se negar a luta e ri de meus receios. Até porque se numa crônica ela é guerra e desafio, na outra já é carinho, saudade e memória, para na próxima ser ironia e esculacho. Mas até esculachar ela faz de tal jeito que o esculachado ficará em situação ainda mais difícil ao reagir ou ficar com raiva. Pra não piorar, melhor mesmo é pedir desculpas e enfiar a viola no saco. No carinho e na memória, é que mais gosto da Urda, embora tanto admire a guerreira e a Pomba-gira.
Refiz com ela o caminhar lento entre os tantos ornamentos e vegetais da sala, varanda e soleiras do Rio Vermelho, pra explodir de riso na lembrança daquelas molas a reproduzir o coito canino que o próprio Jorge Amado menoscabou na história do “Capitão Vasco Moscoso de Aragão – Comandante de Fragata”. Traquinas, fazia questão de acionar o brinquedo para atiçar a imaginação das visitas e encabular Zélia em seu comedimento paulista. Pois Urda conta como se abusou nos abusos do saudoso baiano.
Urda me levou pra Bolívia, me fez orar à Pachamama. Me meteu em guerras cruentas, me levou a passear pelas ruas e conversar com os cidadãos comuns como nós: eu e ela. E me fez ser malcriado com pequenos burgueses, prepotentes, idiotizados pelos próprios umbigos.
Provavelmente por ser capaz de tudo isso sem ter de ficar reafirmando intelectualismos ridículos ou dar carteiradas ideológicas, ela conquistou-me a coragem de lhe enviar coisas de minha autoria: crônicas, ou textos, ou artigos... O que sejam!
Sejam o que forem, agradaram, pois Urda se tornou dessas tantas boas amizades pela internet. Mais que isso, quando me dei conta, estava eu também espalhado lá pelos mundos da Urda, em textos que por sua iniciativa se distribuíram da Patagônia à Chiapas, do Cabo Verde a Moçambique.
Mas de que mundo seria o mundo da Urda? - me perguntava. Brasileira, sem dúvida. Talvez, como tantos outros amigos, caros, mas igualmente desconhecidos, lá do Ceará ou das Alagoas. Quem sabe, do Maranhão? Os de Goiás, Pernambuco e Brasília. Até Rondônia! Tantos no Rio de Janeiro e São Paulo. Salvador ou Camaçari. Poderia ser, ao menos, um pouco mais próxima como os do Rio Grande do Sul. Ainda mais, como os de logo ali, do Paraná.
Conversa vai, conversa vem, descubro a Urda aqui ao meu lado: em Blumenau. Então tirei a dimensão de meu isolamento e ostracismo, pois Santa Catarina inteira conhece e admira a Urda há muito tempo (exceção, é claro, daqueles a quem sua franqueza incomoda) e só eu, taciturno casmurro e sorumbático, é que desconhecia a Urda! De aí mais algum tempo veio a Urda lançar um seu livro e, não lembro o que, me impossibilita o atendimento ao convite.
Outra oportunidade foi nos encontros bolivarianos que também não pude acompanhar por, na época, estar estudando. Na mesma UFSC onde ocorriam os encontros, mas em aulas no mesmo horário. Recordo que um dia prometi chegar mais cedo para ao menos meia hora de papo e, enfim, conhecer a amiga que nessas alturas já me divertia em suas confissões pessoais, revelando-se um misto de Rita Lee e Violeta Parra, Mafalda e Rebordosa. Entusiasta de uma revolução com tesão, e vice-versa. Muito bom!
Mas por qualquer contratempo o encontro novamente não se deu.
Depois veio a tragédia de Blumenau, Itajaí e toda aquela região. Alguns dias sem contato e eu alarmado com o derruir daquilo tudo, já procurando Urda e Atahualpa (seu adorado companheiro canino) entre os destroços das notícias, até que ela consegue emitir sinais de sobrevivência, abrigada no depósito de sua editora.
Ufa! Mas de qualquer forma a preocupação: o que fariam naquela Pompéia, uma mulher e um cachorro desabrigados?
Crônicas, claro! E Urda se pôs a contar ao mundo a mesquinhez e os preconceitos intactos de uma estúpida classe média soterrada, mas ainda assim pedante.No entanto, sem nunca perder a sensibilidade, reportava também seus diálogos com os andarilhos, os que vagavam em busca dos bandos excluídos para chorar seus mortos e celebrar a sobrevivência. Em meio das perdas e tristezas de amigos e familiares atingidos, sem noção de qual rumo dar à própria vida, mais uma tragédia irrompe do outro lado do mundo e, na germânica Blumenau, uma solitária e insólita palestina caucasóide, envolta na bandeira do país ocupado e com a cabeça coberta pela hata (o turbante de losangos que na paz é branco e na guerra vermelho), faz questão de que se registre e se distribua sua foto ao mundo, comprovando em si a resistência contra o massacre na interiorana Blumenau.
Na sexta-feira passada vou atender a campainha e uma típica colona alemã, em inconfundível sotaque pergunta se sou quem me chamam pelo nome que me registraram. Confirmo e ela informa vir de uma dessas pequenas cidades da serra catarinense, em busca de hospedagem para 120 crianças. Explico não ter como acomodar nem a quinta parte disso, mas a mulher, num vestido rosa florido, choraminga em seu dizer socado, insistindo em ter de ser em minha pousada porque lhe fora indicada. Eu já impaciente com a teimosia da luterana quando, num sorriso e outra modulação na voz, se revela: “- Ô Raul! Não tá me reconhecendo? Eu sou a Urda.”
Sim! Era a Urda. Viera para a solenidade de formatura de um seu ex-aluno e, aproveitando a proximidade do Sambaqui, dera uma escapada e ali estava: dizendo-se ser a Urda Klueger de verdade! Mas como que eu poderia ter reconhecido a cocalera aimará, renhida defensora de Evo Morales, naquela versão de colona? Quando imaginaria que a anarquista espanhola tivesse uma voz tão calma e tranqüila? Naquela pele clara, não haveria como reconhecer a queniana que briga pelos direitos de suas irmãs! E nos olhos, nos cabelos claros, onde a guerrilheira palestina que me escrevia pedindo para transmitir recados aos companheiros do comitê de Florianópolis?
Entrou já anunciando sua urgência de retorno pela briga contra os desmandos de um prefeito e governo insensíveis e irredutíveis na pretensão de despejar os desabrigados sem lhes dar qualquer solução de moradia, apesar dos tantos bilhões das verbas federais e doações internacionais. Apenas sacudiu um pouco da poeira de sua difícil estrada, fazendo vontade de conversa mais delongada, e já se ia, me deixando uma bruta dúvida: seria mesmo a Urda?
Acompanhei-a até o carro, estacionado sob a árvore da praça em frente de minha casa. No vidro traseiro, duas frases. A de cima: "Se és capaz de indignar-te diante de qualquer injustiça, estejas onde estiveres, então somos companheiros." do Ernesto Che Guevara. Em baixo, uma do Lindolf Bell, o grande poeta de Blumenau: "Menor que meu sonho não posso ser."Reconheci logo. Sem dúvida alguma se tratava da autêntica Urda das Crônicas.
Raul Longo
Ponta do Sambaqui, 2886 88.051-001 - Floripa/SC
Tel: (48) 3206-0047

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