terça-feira, 1 de abril de 2008

Artigo: Meditação e ética: duas tradições

Abaixo publicamos a reflexão do amigo e colega , o jornalista e professor universitário Dr. Sérgio Boeira:

Meditação e ética: duas tradições
Sérgio Luís Boeira
A tradição oriental e a tradição ocidental encontram nos termos "meditação" e "ética" um tema complexo, que desperta divergências e também convergências. Na tradição do oriente sobre meditação não há espaço para a reflexão, para a análise. Pelo contrário, a meditação indica o caminho da não-reflexão, da não-análise. Os ocidentais, em geral, não compreendem como isso possa fazer algum sentido. Para o mundo ocidental, meditar é o mesmo que refletir, mas ao pensar assim o que se consegue é apenas confundir reflexão com meditação. Na tradição oriental, fala-se com certa frequência em meditação como um processo pelo qual é possível deixar a mente vazia, sem pensamentos. Na realidade, a mente não pode constatar seu próprio esvaziamento, pois no momento em que fizesse isso estaria novamente pensando...! Meditar é um paradoxo da mente, pois ao mesmo tempo em que os pensamentos perdem sua agitação, ganham em qualidade e força. Tal força não é um meio, não é a posse de algo. Meditação não pode ser confundida com um instrumento, uma ferramenta, um meio para atingir algo previamente imaginado, pensado, já que para meditar é preciso dispor-se a abandonar os pensamentos, em vez de fortalecê-los, ou seja, é preciso despoluir a mente, em vez de buscar a posse de algo, seja concreto ou abstrato.

Na tradição ocidental, pensar com cuidado, com algum método, com alguma disciplina, com alguma introspecção, dobrando o pensamento sobre si mesmo, é visto como sinônimo de "reflexão". Assim, na tradição filosófica sobre a ética, por exemplo, a reflexão sobre as condutas morais, sobre os valores que orientam as condutas, sobre as conseqüências das condutas - tal reflexão fez, ao longo dos séculos, com que a ética se tornasse diferente da moral, embora tenham surgido como sinônimos. A ética não é mais costume, como era na antigüidade. Agora é reflexão sobre os costumes. Mas não sobre quaisquer aspectos dos costumes. A reflexão ética sobre os costumes busca nestes os aspectos morais, ou seja, aqueles aspectos que estão vinculados ao que se considera "bem" ou "mal" em cada região, em cada momento histórico. A reflexão ética de certa forma busca analisar a qualidade da moral, observar se os atos e comportamentos relacionados a bem e mal são coerentes em cada contexto. Visa também orientar os atos e comportamentos apontando, neles, as contradições, as falhas, a relação entre princípios, meios e conseqüências. A reflexão ética, em princípio, nada tem a ver com meditação. Faz parte de uma outra tradição. No entanto, ao aprofundarmos um pouco mais a compreensão sobre os efeitos da meditação, descobrimos que há uma salutar convergência entre ética e a busca de uma despoluição da mente, de um esvaziamento da mente. Acontece que a ética e a meditação se encontram na qualidade de vida e de pensamento, na qualidade da sensibilidade para a auto-observação, na capacidade de desapegar-se de hábitos, de condicionamentos. Para a ética, a meditação serve como uma preparação salutar no processo de compreensão distanciada e crítica dos comportamentos, dos atos, dos seus princípios e consequências. Para a meditação, a ética é inicialmente apenas mais uma parte da mente vinculada a uma idéia, a um conceito. A meditação não parte da ética. Não parte de nenhum objetivo que não seja a própria meditação. Por isso é um paradoxo, um processo complexo.

Há termos que muitas vezes são confundidos com meditação, como concentração, mentalização, etc. Nada disso é o mesmo que meditar. A concentração, por exemplo, pode ser um efeito da mente que deixou sua fase dispersiva para trás. Então é um efeito da meditação. A mentalização, por sua vez, pode ser uma prática de imaginação visando potencializar a mente e o corpo, visando firmar alguns objetivos na vida. Isto também não é meditação, embora possa fazer parte de um modo de vida em que a meditação é algo central.

A meditação começa com a auto-observação, ou seja, com a percepção de si mesmo, sem pretensão de analisar a si mesmo. Análise é um processo de fragmentação e a meditação é um processo de reunificação da mente consigo mesma. Apontam para direções opostas.

A meditação pode incluir técnicas de relaxamento, mas não se resume a isso. Não depende de nenhuma técnica, com um começo, meio e fim. A mente torna-se meditativa à medida que se torna sensível aos seus movimentos internos, à respiração (que liga o consciente ao inconsciente), às circunstâncias em geral.

Para começar a meditar não é preciso ter um local apropriado para relaxar. É possível auto-observar-se sem julgar a si mesmo em qualquer circunstância. É possível observar os movimentos da respiração, escutar atentamente os sons ao redor, tornar-se altamente perceptivo, sem pretender analisar ou julgar nada. Não é meditativa a mente que está preocupada em atingir um objetivo por meio da meditação, seja qual for o objetivo, pois isto se torna um obstáculo ao processo de meditação.

Assim, a ética pode visar a felicidade, mas a meditação só pode visar a redução e se possível a eliminação dos pensamentos.

A ética pode beneficiar-se da meditação e vice-versa.
Mas enquanto a ética pode tomar a meditação como um meio de desapego em relação ao que pretende analisar, a meditação não pode tomar a ética como um meio para avançar no seu processo, porque isso só a faria recuar. Qualquer análise faz a meditação recuar, até mesmo a análise que se apresenta como ética.

Assim, as duas tradições, a da reflexão e da meditação, podem encontrar-se na ética como bem-estar, como felicidade, como desprendimento ou desapego, mas não como análise.

Entretanto, a mente meditativa não perde a condição de mente reflexiva, pois os pensamentos voltam sempre à mente, de forma natural, com maior ou menor força, com mais ou menos dispersão e fragmentação. A mente meditativa pode então adquirir, ao longo do tempo, melhores condições de tornar-se reflexiva, analítica, além de meditativa.

Por isso essas duas tradições têm muito que aprender entre si, somando suas qualidades e subtraindo suas incompatibilidades.

Para azar do preconceito e da superficialidade...

Sérgio Luís Boeira

Um comentário:

LUCIANA disse...

PARABÉNS! TEXTO INTELIGENTE, AGRADÁVEL E ATUAL.