NAÇÃO DEFENESTRADA
Raul Longo
Pobres, morávamos na Vila Guarani, distrito do Jabaquara. São Paulo, inícios da década de 60.
Nos finais de semana visitávamos parentes em melhor situação financeira, no vizinho bairro de classe média: Cidade Vargas.
Dava para ir à pé e o conjunto habitacional planejado imitava os dos subúrbios norte-americanos: casas padronizadas em meio a terrenos de bom tamanho, ajardinados e abertos. Extremas apenas delimitadas por cavaletes de água e postes de energia elétrica.
Com o tempo e a incidência de assaltos, aos poucos cada proprietário foi erigindo seu próprio muro, cerrado por portões e grades pontiagudas.
Um dos primeiros a tomar tal providência foi o Nelson Gato, o mais ilustre morador. Mas não o fez por causa das visitas dos ladrões de quintal das vizinhas Vila Guarani e Água Funda, que só ocorreram mais tarde. É que como jornalista dos Diários Associados, Nelson herdara do patrão, Assis Chateaubriand, o hobby de criar pássaros exóticos em um grande viveiro.
Para nós, meninos e primos, a casa ao lado de meus tios era um fascinante minúsculo zoológico onde passávamos horas apreciando o comportamento daquelas aves de diferentes regiões do país e partes do mundo.
Em um final de semana daqueles, estranhamente os adultos nos proibiram adentrar os muros com que Nelson Gato protegia o viveiro, alegando que o jornalista estaria viajando. Por sua atividade, era comum se ausentar durante longos períodos, mas até então sua ausência nunca fora empecilho para o acesso de nossa curiosidade infantil, e o inusitado mistério daquele dia se avolumava nos cochichos e conversas veladas dos adultos, com um ou outro indo e vindo da casa do vizinho.
Ficamos ainda mais confusos e desconfiados da ocorrência de alguma anormalidade, quanto o tio Alberto, até então desaparecido, avisa por cima do muro para outros tios e pais sintonizarem uma das emissoras dos Diários Associados.
Não recordo se Tupi, Difusora, ou Cultura, mas lembro de ouvirmos a voz do Nelson Gato roufenha e cheia de estáticas, como se transmitida de muito distante, por um aparelho de comunicação semelhante aos rádios dos seriados de guerra da TV.
O apresentador das edições extraordinárias, isso que hoje se chama de "âncora", enaltecia a intrepidez do corajoso repórter que se embrenhara nas matas atlânticas do litoral do estado do Paraná, alcançando antes da polícia um perigoso foragido que fora ferido durante a evasão de um cerco policial. E sempre finalizava prometendo para qualquer momento novas revelações do "bandido" e informações exclusivas aos ouvintes da então líder de audiência das rádios paulistanas.
Alguns anos depois Nelson Gato se notabilizou com o livro "O Navio Raul Soares", onde relatava seus dias de cárcere como integrante da primeira leva de prisioneiros trancafiados naquela embarcação pelo golpe de 1º de Abril de 1964.
A propalada moralização da coisa pública pelos ditadores militares jamais aconteceu. Pelo contrário, piorou e muito. Nelson hoje seria um passarinho perto dos gatunos do atual jornalismo brasileiro, mas morreu faz tempo. E também meu tio Alberto, depois de gozar alguns anos de aposentadoria da Polícia Civil de São Paulo, como investigador ou detetive... Não lembro exato.
Também não lembro qual era o nome do ferido de voz embargada pela dor e pelo medo que podíamos distinguir pela transmissão precária das tais edições extraordinárias a se repetir por vários dias, até que, enfim se anunciasse sua captura pelos policiais. Mas não esqueço da revelação indignada de meu pai, pedindo segredo aos demais primos e contando que o tal perigoso facínora já fora apanhado dias antes e era mantido ali na casa do jornalista, onde, sob tortura, o obrigavam a confessar numa simulação de entrevista todos os crimes na época não desvendados pela polícia paulista, como uma exclusividade de jornalismo investigativo e heróico.
A evidente manipulação do caso da menina Isabela me remete a vergonhosa lembrança desse episódio de infância, e a cada vez que a Fátima Bernardes ou o William Bonner anunciam mais uma informação sobre o caso obtida com exclusividade pela Globo, tenho a exata sensação que teria a garotinha caso recobrasse alguma consciência no momento de ser lançada pela janela, e se o pai, conforme os indícios, fosse o autor dessa defenestração.
Assim como Isabela não poderia compreender porque quem lhe deveria proteger a estaria covardemente lançando do sexto andar de um edifício, eu não posso compreender como a polícia, o Ministério Público e o governo federal, permitem que se use de uma concessão que é minha, pois eu sou o público, para me manter pendurado através de mórbida manipulação de meus sentimentos e de minha indignação.
Com muitos menos indícios de autoria de qualquer desvio de conduta ou autoria de ato criminoso, muitos casos já foram considerados finalizados, encerrados. O noticiário a eles se reporta apenas por ocasião de suas comprovações, invariavelmente cometendo o crime de se omitirem quando as conclusões finais são contrárias ao alardeado pelo tal jornalismo de hipóteses, um absurdo inventado por Ali Kamel, diretor da mesma Globo.
De fato, todos os indícios apontados pela perícia apontam à repugnante autoria do pai e da madrasta, mas ainda mais nauseante do que o próprio infanticídio se tornou a exploração da tragédia. Não há dúvidas de que os autores da morte de Isabela serão exemplarmente punidos, mas os gigolôs da emotividade pública continuarão impunemente usando suas páginas e telas para defenestração de nossas consciências e sentimentos ao vazio de qualquer senso de dignidade humana.
Até quando, em nome de uma dúbia e inconsistente liberdade de imprensa, teremos de assistir tal atrocidade acometendo tantas vítimas: nós mesmos, o público brasileiro?
Raul Longo
Pouso da Poesia
Ponta do Sambaqui, 288688051-001 - Floripa/SC
Tel: (048) 3335-0047
Um comentário:
Excelente texto de Raul Logo, que com clareza denuncia o jogo de exploração da mídia dos sentimentos do público brasileiro, instalandoo horror dentro da casa de cada um de nós e anestesiando-nos para outras barbáries bem mais sérias e aviltantes que ocorrem neste país.
Daniela R. Schneider
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