Por Raul Longo
Durazno é uma das palavras do espanhol que nos soa estranho. Reporta-nos a algo de consistência rija, dura. Não tem nada a ver. Durazno é pêssego. No Chile os pêssegos são enormes. Muito maiores, mais macios e saborosos do que os nossos. Claro! O clima frio do sul. E seco. Não conheci o norte do Chile, ainda mais seco, mas estive no sul da Bolívia, quente e úmida. Não quero ser injusto com los duraznos da Bolívia, mas ao menos quando lá estive, eram duros mesmo. Pequenos, duros e ácidos. Piores que os nossos. Pode ser que em outras épocas do ano, os pêssegos bolivianos sejam melhores. Não posso mais lembrar em que mês lá estive. Foi em 1978. Era quente, isso sim eu lembro. Talvez fosse carnaval, mas o carnavalito não se dança só no carnaval. De repente, em meio a um grupo de bebedores de chicha, aparece alguém com um charango, outro com zampolla. “- Y está!” Vão pela rua poeirenta e deserta, em grupo de meia dúzia de homens a tocar para duas ou três cholas abanando suas múltiplas sobre-saias.E eu atrás, lógico! No princípio estranhavam aquele branco barbudo no meio de índios, mas logo os fazia me descobrir brasileiro.Houve perguntas embaraçosas: “- Le gusta la coca?” “- No señora! Gracias, pero me gusta la Plazeña! Muy mejor que las cervezas de Brasil!”Até eu me dar conta de que se referia ao produto mais procurado pelos brasileiros por lá, e não à Coca-Cola, já estavam todos rindo e identificados com minha ingenuidade. “- Y a bailar carnavalito!” Mas o calor exigia algo refrescante, e como não gostava de nenhuma das cocas, tomava os refrescos de duraznos. Para comer eram muito inferiores aos chilenos, mas depois de fervidos põem aquele saboroso chá de pêssego a gelar e, em silenciosos casais, se postam próximo a alguma esquina daquelas ruas sem calçadas e calçamentos, esperando um raro passante sedento. Naquela tarde fui eu quem surgiu em meio à poeira, pedindo um copo de refresco de durazno. O homem, de chapéu coco e paletó curto e apertado, ao lado da mulher sentada atrás do tabuleiro. Imóvel, com as mãos nos bolsos e com indefinível e permanente sorriso, idêntico ao da mulher que enfia a concha no grande caldeirão para derramar o líquido avermelhado no copo de vidro que me deu a segurar; apenas declinou levemente a cabeça em resposta ao meu cumprimento. Ia levar o copo à boca, quando escuto o assoprar da zampolla e o alegre rasquear do charango virando a esquina, trazendo o carnavalito. É forte o refresco e difícil de tomar num só gole. Naquela atrapalhação me volto para o homem e a mulher, querendo observar como reagiam ao festejo, e me impressiono.Mascando a folha de coca -- que mais tarde tive de aprender necessária não apenas para evitar o soroche das alturas, mas também para enganar a fome naquelas planícies do Chaco – na mesma posição de quando deles me aproximei, olhavam para a mesma direção, à frente. Mas além do grupo e das músicas, além das mulheres segurando e agitando suas tantas saias ancestralmente impostas pelos preconceitos jesuíticos. Olhavam muito adiante do carnavalito e das casas do outro lado da rua. Como se mirassem outra melhor paisagem, adiante da melancolia daquela rua deserta, invadida pelas oito ou dez pessoas brincando uma alegria despojada que, seguindo em frente, foi se sumindo na poeira. E havia altivez no olhar daquele casal, tão pequenos em suas roupas velhas e puídas. Ou eu confundia a placidez daqueles olhares? Ou eu que não conseguia entender o sentido daquele olhar alheio ao momento do carnavalito, como se perdido no tempo? Passado ou futuro? Impossível definir, pois nada buscavam aqueles olhos. Apenas olhavam adiante daquele momento e realidade. Daquela vez não consegui seguir o carnavalito. Não sei se por curiosidade, ou reverência, tomei o refresco lentamente, querendo comungar com aqueles olhares. Ou, na verdade, querendo entender, saber o que olhavam para não demonstrar a menor comoção com a música, com a dança, com nada. Como se absolutamente ausentes. Mais tarde vim a perceber ser muito boliviano isso de aparentar não estar presente, não pertencer à realidade. Naquele momento, em minha ansiedade por compreender o significado da distância daqueles olhares e sorrisos, defini-os como olhares de pêssego. Só hoje, indignado com os golpistas da Bolívia e lembrando aquela tarde de uma cidade do Chaco, posso compreender o significado da placidez altiva dos quéchuas e aimaras de Evo Morales. Hoje percebo que nunca estiveram alheios à realidade, mas sim a realidade dos coronéis e latifundiários golpistas é que é alheia à Bolívia. Também lembro que o gosto do refresco de durazno é acre! E, enfim, posso enxergar o que viam aqueles olhos.
Raul Longo
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Um comentário:
Parabéns pela ótima narrativa. Indispensável nestes momentos insensíveis da oligarquia mediática. Enfatizar a humanidade latino-americana com uma narrativa cativante e rica é oportunamente procedente.
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