OLHOS DE PUS
Raul Longo
Em menos de um mês rascaram as cascas das piores feridas do Brasil. Aliás, o país nunca soube tratá-las devidamente. Achamos que quaisquer produtos de propaganda e farmácia vão sarar as profundas feridas que abrimos ao longo de nossa imprevidente história. Colocamos ali um mercúrio-cromo, ou mertiolato, e cobrimos com um band-aid cor da pele, pra ninguém notar. Não adianta! Por sob a casca da ferida, sempre se esconde a progressão da infecção que será ainda mais nociva do que o machucado em si. É preciso paciência, e vamos por capítulos. Ou pelas três ulcerações abertas só neste último mês:
CANCRO I
Ridícula isso de em tudo se tomar os Estados Unidos como modelo, para traçar comparações. Coisa de colonizado! No entanto, aqui é recomendável para melhor demonstrar como, apesar de uma sociedade extremamente descartável, consumista, e alienada, ali se cuida melhor da evolução histórica e social. Na questão indígena, por exemplo, não só o governo, como inclusive as mais altas patentes do exército norte-americano reconhecem as grandes traições àqueles povos, em que se constituíram cada um dos tratados assinados pelos “Grande-Pai dos brancos”, conforme eram chamados pelos índios os presidentes do país. Escritores e intelectuais abordam o tema com rigorosidade aos fatos, que são versados ao cinema para conhecimento popular. No Brasil, onde se assinou o primeiro Tratado de Paz das Américas, na praia de Iperoigue, durante a Confederação dos Tamoios, ainda tratamos os índios como feras e Anchieta como santo, apesar de terem sido os brancos que traíram o acordo exterminando os tupinambás. Até o nome da localização de tal marco histórico se vulgarizou em praia do Cruzeiro. Ainda recente, em 1980, censurou-se a exibição de documentários como “Terra dos Índios” de Zelito Viana, e “Raoni” (nomeado ao Oscar em 79) de Jean-Pierre Dutilleux e Luiz Carlos Saldanha, entre outros programados para a Semana do Índio em Mato Grosso do Sul. Naquele evento, com muito esforço, ao menos se conseguiu a participação do Prof. Darcy Ribeiro, recém retornado do exílio imposto pela ditadura militar. Não é a toa que o General Heleno (já popularizado como Heleno de Tróia) meteu a unha na ferida, vindo a público declarar que nossas fronteiras estarão ameaçadas se as entregarmos aos índios, ao invés de arrozeiros do Rio Grande do Sul. O General Heleno não conhece a história do país. Se a conhecesse, saberia que isso que nos contam nos bancos escolares, de que devemos nossas dimensões continentais aos bandeirantes, é balela sem fundamento. Bandeirantes, assim como os arrozeiros que foram para Roraima, nunca tiveram nenhum outro objetivo além da exploração da mão-de-obra barata ou escrava e do lucro imediato. Ontem por minérios preciosos, hoje por pastos e cereais, ninguém adentrou as lonjuras sertanejas pensando na grandiosidade de país algum, ou em defesa de outros interesses que não fossem os próprios e individuais. Os tantos vilarejos fundados nos interiores do país, só se mantiveram pelo aguerrido povo indígena que defenderam os poucos missionários catequistas e um ou outro branco degredado do convívio social urbano, e ali abandonado pelos tais heróicos bandeirantes. Quem imagina o Heleno de Tróia que defendeu as fronteiras de Roraima antes dos arrozeiros? O exército? Se conhecesse ou admitisse a história e a realidade de sua instituição, Heleno saberia que nunca tivemos contingente para garantir nossas tão amplas extensões de inóspita e selvagem natureza. Elas se mantêm inalteradas desde o Império, exatamente pelos povos capazes de sobreviver naquelas condições ambientais: os índios. E como correspondemos? Em abril comemoramos o dia do índio. Vez por outra se incluí um personagem dessa etnia em alguma telenovela, ou se fantasia uma corista de programa de auditório batizando-a com nome de personagem de José de Alencar. E pronto! Saímos garantindo ao mundo que somos uma democracia racial. Puro band-aid! E ainda vem um juiz de Supremo Tribunal a corroborar com a leviandade do Heleno, sugerindo que chegaremos a devolver o Rio de Janeiro ao Araribóia. É o pus. O sintoma da infecção que se alastra por baixo da ferida mal tratada.
CANCRO II
Nem bem a água oxigenada ferveu sobre o caldo de bactérias de interesses contrários aos dos brasileiros, e já um professor da Bahia nos vem cutucar outra chaga histórica, arrolando o QI do povo baiano como álibi à sua própria incompetência. E, ainda pior (se é que dá para ser pior do que os demais!) esse é da área de saúde. Ignorará também que a medicina baiana já formou muitos cientistas de renome internacional, e se fez referência nacional em diversas especialidades? Mas o coordenador reprovado no ENADE escarafunchou outra dolorosa ferida brasileira: o racismo. Sob a finíssima casca de sua privilegiada condição social e conhecimentos atestados por vistosos e emoldurados diplomas, faz referências ao Olodum e ao berimbau, dois ícones da nossa cultura popular, comprovando também em si o pus dessa infecção. Apesar de considerados mais racistas, os norte-americanos vem tratando suas feridas de preconceitos aos afro-descendentes com muito maior efetividade, através de todos os meios de conscientização social. Aqui ficamos no faz-de-conta das telenovelas, onde negros têm iguais oportunidades a dos brancos para ficarem ricos e morar longe das favelas. Se não isso, esfolam sambas e cavaquinhos em pagodes paulistas, num linchamento à própria cultura incentivado pelas produtoras fonográficas e os meios de divulgação.
CANCRO III
Pois na semana seguinte a exposição do cancro racista, chega à vez de um senador da república. Cargo criado na antiguidade, Senadores foram os representantes máximos dos cidadãos de Roma. Por sua sabedoria e senso de justiça, um Senador era o único com condições de questionar as determinações dos imperadores. Com o decorrer da história, já na antiga Roma os Senadores se degradaram, mas ainda hoje, na maioria das nações ocidentais onde o cargo persiste, são considerados os principais pilares da democracia. Razão por deles se exigir, em todo país politicamente orientado por este regime, que sejam dignos e sábios. Exemplos de bom-senso e, sobretudo, convicção democrática. Mas foi um senador norte-americano, Joseph Raymond MacCarthy [1909-1957], quem promoveu o que se considera como o maior atentado a liberdade de expressão no país. Tão ridicularizado quanto os tratados de paz com os indígenas, e o desrespeito aos direitos civis dos cidadãos afro-descentes, MacCarthy tornou-se significado de estupidez da intolerância, criando-se até o verbete macarthismo apontado em dicionários de diversos idiomas, inclusive nos de português do Brasil. No Brasil, mais preocupados em maquiar do em curar nossas feridas, aprofundamos e alastramos as infecções sem nunca curá-las. Assim é com a questão indígena, como demonstrou o General Heleno e o juiz Aurélio de Mello; assim é com o racismo aos afro-descendentes, como esclareceu o Antônio Malta; e assim também é o que ocorre com os crimes da ditadura militar, mantida politicamente pelos da ARENA. Erros políticos todos cometeram e se comete em regimes de exceção. Muitos daqueles que na época lutaram contra a ditadura, hoje reconhecem não terem escolhido a melhor forma de embate quando optaram pela luta armada. A própria Ministra Dilma Roussef, reiterada e publicamente já fez esse reconhecimento. O problema é que saímos da ditadura sob uma maquiagem de democracia, primeiro interpretada pelo ex-presidente da ARENA, José Sarney (que ao menos emigrou para o partido oposicionista do regime militar: o MDB, já então transformado em PMDB). Para substituir Sarney, votamos em um produto promovido pelos mesmos promotores da ditadura: Organizações Globo, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Editora Abril, etc. De Collor de Melo caímos em FHC, que se anunciava exilado pela ditadura, mas tão logo eleito traí o próprio passado aliando-se aos mais radicais apoiadores da ditadura, agora congregados na sigla DEM, ex-PFL, em substituição à antiga ARENA, que vinha da UDN, uma seqüência do PRB que, entre a Proclamação da República de Deodoro da Fonseca, até o Estado Novo de Getúlio Vargas, promoveu a política coronelista dos oligarcas latifundiários. Vez por outra a Globo prega lá um band-aid para esconder as profundas feridas da ditadura, escondendo em mal contados capítulos de seriados e novelas sua ativa participação e promoção daquele regime; assim como omitiu de seus noticiários as multidões que marcharam por todo país pedindo pelo fim da ditadura no Movimento das Diretas Já, aos gritos de “Fora Globo, que o povo não é bobo”. Assim como nenhum político do PFL jamais fez reconhecimento dos malefícios econômicos, sociais, e humanos provocados pela ditadura que representaram. Apesar de apontar a si mesmo como socialista, FHC jamais exigiu que seus aliados assumissem real compromisso e comportamento democrático. Pelo contrário! Assistimos violações de painéis eletrônicos no congresso e acompanhamos declarações de evidente cunho racista, quando não perigosamente próximas a orientações típicas de regimes nazistas, mas jamais soubemos que FHC ou quaisquer das lideranças do PSDB tenham advertido seus aliados, ao menos pedido maior moderação democrática. O que temos testemunhado, cada vez mais, é o afastamento de antigos líderes e integrantes do PSDB, mais identificados com a democracia. Já é tão sensível a desilusão com as orientações do partido, que muitos evitam se intitular tucanos. Ou, como há pouco um conhecido explicou-me seu eminente desligamento do PSDB: “- Sou tucano, não urubu.” Não cometerei a leviandade de declinar o nome do autor da sintomática declaração, assunto pessoal de uma personalidade conhecida em diversos estados, mas posso revelar ter apontado como principal motivo de sua indisposição a permanência de certos nomes que formam o atual quadro do partido, notadamente os senadores Arthur Virgílio e Álvaro Dias; além de alianças que considera inaceitáveis pelo que chama de razões históricas. O senador do DEM, Agripino Maia, questionou Dilma Roussef por ter mentido sob tortura ao longo de 3 anos de cárcere. Na voz embargada da Ministra, se conteve a dor dessa velha ferida, mas não foi apenas nela que doeu a lembrança do senador. Inadvertidamente, o petulante levantou a casca da ferida de todo o país, e, além disso, expôs de forma inequívoca a maquiagem de seus aliados do PSDB. Ora! Não dá mais para disfarçar e continuar enganando os esquecidos. Não tem como alguém dizer que se aliou aos fascistas, mas não é fascista. Aliou-se aos nazistas, mas nunca foi nazista. Se não foi e não é, mantêm a aliança por quê? E não venham com desculpas de governabilidade, pois além de não ser o caso, visto não serem governo, qual a representatividade do DEM (popularmente conhecido como DEMo) em votos? Até quando o Brasil continuará disfarçando suas feridas? Maquiando? Até quando o PSDB se sujeitará a ser uma bandagem para encobrir seus aliados, permitindo que os do PFL, DEM ou DEMo, se disfarcem de democráticos? A estupidez, própria dos prepotentes, provocou a indignação da Ministra que, desabituada das hipocrisias parlamentares, não teve qualquer receio de arrancar a casca e demonstrar a real putrefação sob a empoada bandagem da figura do senador. Prosaica figura de moleque tomando pito. Sem onde enfiar a cara: apenas os olhos piscando. Por um resquício de vergonha, como a que acomete alguns amigos ainda tucanos? Há quem não acredite nessa possibilidade entre os do DEM, sugerindo ser o efeito do purgar de uma crônica conjuntivite mal curada. É o mal do país. E será, até que se escreva o capítulo final dessa histórica putrescente.
Raul Longo
Pouso da Poesia
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